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Barracas e Favelas – Uma reflexão crítica de Cidades Esquecidas

Por Jorge Luiz Barbosa, coordenador do Observatório de Favelas

Este artigo tem a sua inspiração no filme documental Barraques, La Ciutat Oblidada, dirigido por Alonso Carnicer e Sara Grimal. Busca-se construir uma tessitura comparativa, sob a forma de apontamentos reflexivos, entre fenômenos urbanos semelhantes, embora distintos em suas especificidades geográficas, denominados como barracas, em Barcelona, e favelas, na cidade Rio de Janeiro. Quais são as aproximações e distinções ente as moradas populares – barracas e favelas – em Barcelona e no Rio de Janeiro? Como podemos revelar uma cidade através da sua outra face, tendo as barracas e as favelas como referências primordiais de análise?

O filme documentário Barraques – Ciutat Oblidada pode ser definido como uma geografia de memórias sociais. Seu percurso é convidar o presente para retirar o passado do esquecimento. São pequenas histórias individuais contadas por seus personagens reais; homens e mulheres que viveram nos barris barraquistas de Barcelona. As memórias são ativadas no reencontro das personagens com seus lugares de morada. Os relatos são grafias de vivências: a casa, a família, os vizinhos, a pobreza material, as alegrias, as dores e as lutas cotidianas pelo direito legítimo de habitar a cidade (…) são fragmentos do tempo colhidos no espaço social da própria vida. Ruínas são revistadas: – Ali era sala! – Aqui era o quarto onde dormiam minhas irmãs; – Não havia água disponível em nossas casas, precisávamos buscá-la na fonte pública da praça; – As nossas ruas eram precárias! Enfrentamentos sociais eram revividos:Vivíamos sob o temor de sermos banidos e perdermos tudo! A polícia nos tratava com violência! Lutávamos para defender nossas casas, pois era a única coisa que tínhamos! Frases que tanto podem estar no documentário como na vivência de moradores de favelas cariocas.

Alonso Carnicer e Sara Grimal, diretores do filme documental, acompanham de modo sutil e elegante as personagens em cena. São artesãos de tecidos finos e frágeis destinados ao esquecimento. Os entrevistados ganham autonomia, desta vez conduzem suas próprias histórias. Não são mais atirados para os polígonos de “casas baratas” da periferia. Suas falas constituem um roteiro implícito que vai construindo o compasso da obra cinematográfica. Imagens do passado reforçam os relatos. O arquivo é reaberto para conhecer uma cidade oblidada.

Do encontro entre e as palavras e a paisagem emergem nomes que não são demasiadamente estranhos aos ouvidos de um brasileiro. Somorrostro, Carmel, Perona, Can Clos, Camp de la Bota (…) parecem corresponder a outros nomes bem conhecidos: Rocinha, Maré, Alemão,Vigário Geral, Acari. As imagens do documentário ampliam as aproximações. Reaparecem na tela as moradas de imigrantes pobres que chegavam à cidade, na década de 1960, fugindo da miséria do campo ou em busca de um refúgio face às perseguições políticas do pós-guerra.

Tal como as favelas cariocas dos anos sessenta do século passado, as barracas eram moradas construídas pelo empenho cotidiano das famílias, mobilizando toda sorte de materiais que a sua condição econômica e social permitia. Desprovidas de serviços de saneamento básico e ocupando terras urbanas geralmente sem a titulação oficial, as moradas populares foram sempre consideradas como ilegais, insalubres, feias e perigosas. Lugares destituídos de ordem, lei e civilidade; segundo os padrões políticos e culturais hegemônicos.

A composição das populações das barracas em Barcelona, assim como a das favelas no Rio de Janeiro, era outro marco de distinção que “naturalizava” as condições urbanas de desigualdade. Os residentes das barracas e favelas não eram apenas pobres. Eram pessoas de origem rural, consideradas incultas e miseráveis e, no caso particular ao Rio de Janeiro, nordestinos e afrodescendentes. A diversidade de identidades culturais e os pertencimentos étnicos presentes nas moradas populares foram violentamente marcadas por estereótipos sociais e estigmas raciais que reduziam seus habitantes à condição de não-pertencentes ao espaço de civilidade, portanto recusados como sujeitos corporificados de direitos na cidade.

Apesar de indesejáveis na paisagem urbana, barracas e favelas podiam ser toleradas pelo cinismo das autoridades do Estado, desde que contidas e sitiadas por distintas táticas de controle social, político e, evidentemente, policial. Repressão, paternalismo e clientelismo constituíram táticas de poder territorial mobilizadas contra a presença notória de barracas e favelas na fisionomia das cidades.

A tolerância pérfida por vezes foi substituída por ações arbitrárias de remoção. O autoritarismo mostrava sua face nada oculta com a expulsão dos indesejáveis da urbe. Os Polígonos de Vivenda em Barcelona (a exemplo de La Mina) se assemelham aos conjuntos habitacionais construídos na periferia da cidade do Rio de Janeiro (Cidade de Deus, Vila Aliança, Vila Kennedy, dentre outros), para onde diversas famílias foram transladadas. A erradicação das moradas populares de áreas valorizadas e reclamadas pelo mercado imobiliário representava, para os removidos, a dissolução de relações fundamentais de proteção social (familiares e de vizinhança), a redução das possibilidades de acesso ao trabalho e o distanciamento ainda maior do uso de serviços urbanos básicos.

Personagens do documentário de Carnicer e Grimal nos revelam a sua mudança para as chamadas casas baratas. Algumas delas em conjuntos habitacionais de qualidade discutível e distantes dos lugares de trabalho. A luta pela moradia digna não se encerrava, apenas ganhava um novo capítulo. Era preciso ampliar os esforços das famílias transladadas pela conquista de condições de habitabilidade dos imóveis, pela oferta de transportes e pela provisão de serviços urbanos básicos.

O esgotamento do franquismo na Espanha e a política de transição democrática criaram diferentes cenários em relação ao governo das cidades. Em Barcelona, a vitória da coligação partidária de esquerda significava, sem dúvida, a enunciação de políticas urbanas democráticas, dentre elas, a superação das condições de morada dos pobres da cidade.

A política de vivendas protegidas emergiu como uma das possibilidades de erradicação das barracas na fisionomia urbana e, de modo contundente, do barraquismo como movimento social de ocupação da cidade. Habitações em padrões de melhor qualidade física foram construídas, seja pela ação pública dos governos provincial e municipal ou de agentes imobiliários interessados em um novo mercado de consumidores de moradias. Todavia, tratava-se também de um processo de ordenamento urbano da presença dos pobres na cidade, combinando a desocupação de lugares para novas e modernas instalações urbanas com o deslocamento de populações para as bordas da cidade e/ou para os municípios da região metropolitana. As intervenções urbanas vinculadas à realização dos Jogos Olímpicos – como as do Poblenou – são demonstrativas da outra face da erradicação do barraquismo em Barcelona.

No Brasil, após vinte anos de democratização, os direitos sociais e humanos fundamentais das populações residentes em favelas e periferias urbanas não foram devidamente garantidos e efetivados. As favelas continuaram sendo identificadas como espaços de carências absolutas e seus moradores tratados como objetos de ações discricionárias dos governos eleitos. As políticas sociais e urbanas voltadas para as favelas continuam incompletas, descontínuas e, não raramente permeadas por interesses eleitorais.

Diante do fracasso dos programas de remoção, da incapacidade do Estado em prover moradias populares e do desinteresse dos agentes imobiliários na construção de habitações para populações de baixa renda, as favelas cariocas se adensaram e se expandiram pelo tecido urbano, revelando as dimensões geográficas da desigualdade social no Rio de Janeiro.

Por outro lado, agravou-se, contraditoriamente, nesses vinte anos de democratização, a perda da soberania urbana do Estado sobre diversos territórios da cidade, sobretudo diante da ascensão de grupos armados (narcotraficantes e, mais recentemente milicianos) nas favelas cariocas. Situações de violência tornaram-se recorrentes, seja em função dos conflitos pelo domínio do território entre facções rivais, ou pelo confronto intermitente destas mesmas facções criminosas com a polícia. Entre 1991 e 2005, o registro de homicídios da violência indistinta alcançou 104.589 pessoas. Destacaram-se, dentre os vitimados, os jovens negros residentes em comunidades populares. Nas favelas cariocas as lutas pela moradia digna, pelos serviços públicos de qualidade e pela sua própria existência na cidade se confundem cada vez mais com a defesa do direito à vida.

O documentário de Alonso Carnicer e Elza Grimal nos coloca diante da importância do resgate da memória social, não somente para tirar do esquecimento o passado de sofrimentos e lutas dos grupos populares em Barcelona, mas sobretudo como um dispositivo político para reivindicar outro futuro para todas as nossas cidades.

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