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Religião, espiritualidade e fé no sistema socioeducativo

Por Camille Rodrigues e Silvana Bahia (camille@observatoriodefavelas.org.brsilvana@observatoriodefavelas.org.br)

Fotos: Kita Pedroza

No próximo dia 22 a Galeria 535 recebe a mostra “Em nome do Sagrado” com fotografias de Kita Pedroza, pesquisadora e fotógrafa, sobre assistência religiosa em unidades socioeducativas, destinadas aos adolescentes em situação de conflito com a lei. A exposição abre o Festival de Fotografia Popular realizado pelo Programa Imagens do Povo que acontecerá durante os dias 22, 23 e 24 de maio, no Galpão Bela Maré e no Observatório de Favelas. O trabalho de documentação que gerou a exposição “Em nome do Sagrado” teve início em 2008 e durou até 2010, sendo realizado em parceria com o Instituto de Estudos da Religião – ISER. Nesse período, Kita Pedroza percorreu as cinco regiões do país e visitou 18 unidades socioeducativas. Para saber mais sobre o projeto o Notícias & Análises conversou com a fotógrafa a fim entender melhor esse universo tão pouco conhecido em suas particularidades. A mostra é organizada em três partes: diálogos com o sagrado, ações religiosas e espiritualidades e individualidades. A exposição fica aberta para visitação até o dia 27 de julho no horário de 9h às 18h.

Notícias e Análises: A mostra “Em nome do sagrado” é resultado de uma ampla documentação sobre religião e vivência da espiritualidade no universo de jovens que cumprem medidas socioeducativas no Brasil. Durante as experiências vividas na passagem pelas diferentes regiões do país, quais foram os maiores desafios que você teve ao fotografar essas relações de fé e a assistência religiosa no sistema socioeducativo?

Kita Pedroza: Fotografar as manifestações religiosas e as vivências dos jovens nos espaços de socioeducação pelo país foi, em primeiro lugar, uma experiência única de encontro com muitas histórias de vida. Histórias que singularizam cada adolescente, com suas relações sociais (envolvendo os universos da família, das amizades, da educação, da moradia, das classes sociais e tantos outros), além de questões pessoais diversas (sonhos, conflitos inerentes à formação da personalidade, pertencimentos, entre outros). Portanto, foi, sobretudo, um encontro com pessoas, que têm rostos e histórias, por trás e para além da estrutura das instituições onde se encontravam. Houve também desafios pelo caminho. Um dos maiores foi, justamente, não poder mostrar os rostos dos adolescentes, por questões legais, e, mesmo diante dessa limitação, tentar evidenciar nas fotografias a dimensão humana de tantos jovens reclusos. Pode parecer óbvio dizer que toda pessoa carrega consigo a sua humanidade, mas essa é uma dimensão que, infelizmente, precisa ser permanentemente reiterada no contexto destes adolescentes, geralmente só enxergados, aos olhos da sociedade, por meio do estigma da criminalidade. Por isso, é como se essas imagens pudessem, de alguma forma, manifestar tantas identidades ‘perdidas’ – inclusive por trás dos números que algumas unidades ainda conferem aos jovens quando chegam, contribuindo para esse apagamento de suas singularidades. Outro desafio foi conseguir as permissões dos diretores das unidades e grupos religiosos para registrar suas atividades; no caso dos diretores, a burocracia foi o principal entrave; vencida essa etapa (com grande esforço dos coordenadores regionais da pesquisa), as fotos puderam ser feitas, com maior ou menor liberdade, dependendo da ocasião e do lugar. A maior parte dos religiosos permitiu a realização das fotos, embora alguns deles ‘não tenham aparecido’ nos dias combinados.

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Exposição “Em nome do Sagrado” Foto: Kita Pedroza

N&A: Quais as semelhanças e diferenças mais relevantes identificadas na prática religiosa desses jovens durante esse processo? Existe preconceito entre os jovens que não são religiosos nas unidades visitadas?

KP: É importante lembrar que a documentação fotográfica foi feita integrada às pesquisas sobre assistência religiosa no Sistema Socioeducativo, realizadas pelo Instituto de Estudos da Religião (ISER), entre 2008 e 2010, em parceria, em nível regional, com o Departamento Geral de Ações Socioeducativas do Estado do Rio de Janeiro (DEGASE) e, posteriormente, em nível nacional, com a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. Portanto, informações mais precisas podem ser encontradas nos relatórios de pesquisa ‘Pescadores de homens’ e ‘Filhos de Deus’, disponíveis no site do ISER. Enquanto participava do primeiro levantamento do ISER, como pesquisadora de campo, fui gentilmente convidada a iniciar a experiência de uma documentação fotográfica sobre o tema, com um olhar atento à dimensão dos direitos humanos neste contexto. As realidades em cada unidade do sistema são diversificadas o que dificulta uma apreensão generalizada das práticas religiosas dos adolescentes. A estrutura da unidade e os regimes de medidas socioeducativas aos quais os jovens estão submetidos (regime fechado ou semi-aberto, por exemplo) são alguns dos fatores que influenciam nessas práticas. Nas unidades de regime fechado, pelo que pude observar, o encarceramento, semelhante a uma prisão comum em muitos casos, limitava em muito a vivência da fé e dos aspectos ligados à espiritualidade, bem como a escolha de participação dos jovens nas atividades oferecidas, já que ficavam dentro das celas enquanto os religiosos pregavam nos corredores. Essas situações merecem um olhar mais cuidadoso das autoridades no sentido de buscar resguardar o direito dos jovens de livre escolha das atividades religiosas com as quais se identificam. Como semelhanças, nesses casos, pude ver que essas manifestações se expressavam por meio de escritos no interior das celas (versículos da Bíblia ou menções à fé em Deus e Jesus), nas próprias Bíblias, muitas vezes doadas por religiosos e guardadas pelos jovens, e em adereços religiosos usados, como os crucifixos. Outra forma de expressar a fé, nestes ambientes, eram tatuagens inscritas nos corpos dos adolescentes. Quanto às diferenças, um dos jovens que cumpria medida em regime fechado no Centro Socioducativo Dagmar Feitosa, em Manaus (AM), mostrou uma correspondência que mantinha com um integrante de um grupo religioso; já numa unidade feminina de Campo Grande (MS) – Unidade Educacional de Internação Estrela do Amanhã – um pastor do grupo pentecostal Associação Cristo da Olaria de Deus realizou atividades em forma de ‘aulas’ sobre os preceitos da religião.

N&A: Das 18 unidades visitadas é possível dizer que a prática da fé em ações coletivas e/ou individuais dos grupos religiosos, sobretudo entre os adolescentes é algo comum e diversificado? Quais as religiões estão mais presentes nesses espaços?

KP: Quanto os grupos religiosos mais presentes no sistema socioeducativo brasileiro, de acordo com o mapeamento realizado pelo ISER, em linhas gerais, há predominância das tradições religiosas católica e protestante, seguidas por tradições espíritas. Chama atenção o fato de as tradições religiosas de matriz afro não estarem presentes no sistema. Outro dado importante a ser considerado é o perfil dos adolescentes que estão no sistema socioeducativo, de acordo com o levantamento realizado. Nas unidades pesquisadas em todas as regiões do país, predominam adolescentes do sexo masculino, pretos e pardos são maioria, somando 62,1 %, brancos são 30,7 %; esses adolescentes possuem um grau de escolaridade baixo, a maioria parou ou terminou apenas o ensino fundamental. Do total de adolescentes da amostra, 85,9% romperam seu vínculo com a escola no ensino fundamental e 14,1% no ensino médio – o que nos revela também sobre sua classe social.

N&A: A exposição está organizada em três temas – Diálogos com o sagrado, Ações religiosas e Espiritualidades e individualidades. Qual foi sua inspiração para criar a narrativa deste ensaio?

KP: Durante o processo de seleção das fotografias para a exposição, em conjunto com o curador Milton Guran, percebemos que alguns temas foram se delineando na medida em que examinávamos o material. As atividades religiosas eram apenas uma das dimensões presentes relativas à temática maior da religião nesses espaços de privação de liberdade para crianças e adolescentes. Apesar da dimensão de institucionalidade fortemente presente (e do aspecto de controle que, em geral, suscitam), havia ‘brechas’ onde ocorriam as interações imprevistas entre os religiosos e os jovens (que chamamos de ‘Diálogos com o sagrado’), como uma partida de futebol entre cegos e não cegos, comandada por um grupo de religiosos cegos em Manaus. Nessas ‘brechas’ entre o permitido e não permitido, entre o respeito e não respeito aos direitos, também havia espaço para expressões próprias (de cada jovem) relativas às suas espiritualidades, como as tatuagens, as orações individuais, as conversões etc. Finalmente, percebi que o contato com a religiosidade significava uma forma de conseguir expressar a própria individualidade dentro desses espaços, de emoções contidas, que pouco estimulam ou dão vazão a sentimentos interiores.

N&A: A exposição inaugura dia 22 na Galeria 535, abrindo as ações do Festival de Fotografia Popular. A mostra já passou por Brasília e no Rio, pelo Centro Cultural da Justiça Federal. Qual a importância de trazer esse debate para um espaço como a Maré?

KP: Atualmente, o debate sobre a redução da maioridade penal está fortemente presente em todo o país e também deve ser estimulado em regiões como a Maré. A circulação da exposição nesse contexto, junto às pesquisas realizadas pelo ISER sobre assistência religiosa, ajudam a lançar luz sobre o contexto do sistema socioeducativo, a partir da perspectiva da preservação de direitos. Em 1989, o Estatuto da Criança e do Adolescente foi aprovado após ampla consulta à sociedade, indicando uma série de direitos e deveres constitucionais relativos à população com menos de 18 anos. Desde então, há muitos esforços para aprimorar o sistema socioeducativo, que cuida das medidas aplicadas aos casos de infração às leis, mas ainda há muito por fazer (conforme apontam os resultados das pesquisas). É neste sentido que os avanços precisam caminhar – na busca pela melhor implementação e regulamentação dos direitos já conquistados, que visam reconhecer crianças e adolescentes como sujeitos de direitos e, assim, com maiores possibilidades de melhor convivência social. A meu ver, o caminho da opção pela diminuição da maioridade penal significa um retrocesso no curso do processo histórico, das reflexões sobre as práticas da população adolescente e das lutas por direitos. Questões como violência e criminalidade envolvem aspectos complexos da sociedade brasileira, marcada pela forte desigualdade social; condenar jovens à maioridade penal precoce é contribuir para aumentar o estigma de juventude perigosa que já pesa, sobretudo, sobre meninos e meninas de classes sociais mais baixas (tudo indica que essas classes estão em maioria no sistema socioeducativo, como mostrou o levantamento do ISER).

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