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A arte nos olhos de quem vê

Por: Alan Miranda (alan@observatoriodefavelas.org.br)

Fotos: Davi Marcos / Observatório de Favelas

Todos os dias, milhares de pessoas cruzam a Avenida Brasil, cumprindo religiosamente o trajeto casa – trabalho, não necessariamente nessa ordem. Todos os dias, milhares atravessam as passarelas, fazem baldeação, transitam entre bairros, cidades. Pessoas indo e vindo fazem dos “dias úteis” o tempo de duração do espetáculo que denominamos cotidiano. Esse movimento sincrônico confere à cidade uma estética orgânica, onde os destinos imóveis atraem e repelem essas milhares de pessoas atravessando espaços. Não por acaso, a terceira mostra de arte contemporânea da Maré – bem como as duas anteriores – leva o nome de Travessias. Situada fora do pólo das artes do Rio de Janeiro, a exposição de artes plásticas da favela da Maré carrega esse nome de sentido ambíguo, pelo viés territorial, mas também pela valorização das infinitas possibilidades de interação que podem florescer entre uma obra de arte e seu observador.

A capacidade do Travessias de proporcionar experiências múltiplas, sobretudo através do contexto em que se apresenta, não chega a ser uma exclusividade dessa mostra de artes. Todavia, há uma peculiaridade que inevitavelmente se apresenta como um componente significativo: sua localização é a favela e isso é uma característica relevante tanto na construção da exposição, quanto na relação que se estabelece entre a mostra e seu público alvo. A maioria dos visitantes não é acostumado a frequentar exposições, sobretudo na sua própria esquina. Corre-se o risco de criar um ambiente didático, o que acabaria afetando o projeto. “O conjunto de obras resultante se propõe como um dos panoramas possíveis para o devaneio poético contemporâneo, e de forma mais específica como um estimulador de re-ação à dureza das realidades cotidianas não só dessa comunidade, mas de todos os segmentos da cidade”, explica um trecho da apresentação do Travessias 3 no site.

O Travessias acontece no Galpão Bela Maré, na passarela 10 da Avenida Brasil, e reúne peças de sete artistas mais um coletivo de fotógrafos do Programa Imagens do Povo. A mostra, aliás, acontece sob essas duas ações de fronteiras intencionalmente não definidas: obras individuais no primeiro piso e obras coletivas reunidas num espaço chamado de Miolo.

EXPLICAR PARA CONFUNDIR, CONFUNDIR PARA ESCLARECER

Composto por obras convidativas, o Travessias 3 aposta em uma ação que propõe explorar mais a fundo as possibilidades do convite: o Educativo. Trata-se de uma projeto que Janis Clémen e sua equipe de 11 educadores desenvolveram para flertar com as ideias que se desenham na cabeça de quem adentra o universo ali exposto. Para Janis, coordenadora do projeto Educativo, todo o arcabouço sobre o qual o Travessias 3 se constitui favorece a criação de saberes. “Quando cumprimos o trajeto casa-trabalho ou casa-escola, enfim, nós atravessamos espaços que nos afetam positiva e negativamente. Esse percurso é o início da reflexão que propomos aos visitantes, como maneira de criar identificação com o que chamamos de Territórios de afetos e ativações”, conceitua Janis. “Essa proposta é chamada de MA[PA]RÉ: convidamos o visitante a reconstituir caminhos cotidianos, pontuando lugares e coisas que despertam sensações neles, sejam boas ou ruins” – acrescenta ela.

O nome Educativo parece sugerir uma frente de atuação para as habituais visitas escolares, comuns às exposições artísticas, mas Janis adverte: “o processo educativo não se restringe ao trabalho efetuado nas escolas e para as escolas, mas a qualquer relação onde a troca de saberes seja propícia. Aqui, gostamos de pontuar que não realizarmos visitas guiadas, e sim visitas mediadas, o que faz bastante diferença”. Em vez de guias, o projeto disponibiliza mediadores. Ao longo da visita, esse mediador estimula o espectador, interpela-o, provoca-o com sugestões, com olhares, com impressões próprias, com informações sobre os artistas, usando toda sorte de referências para que o território afetivo entre observador e objeto se revele. Ou não. Para Jean Carlos, aluno do curso de Artes Visuais na Uerj e arte-educador no Travessias, a função de mediador seria equivalente a de um propositor. “Mediar é saber que você não está para passar uma informação, mas conduzir um diálogo de troca de referências, repertórios que o indivíduo experimenta no seu atravessamento com a obra. O mediador estimula narrativas e não se coloca entre o objeto artístico e o público” – define Carlos. O projeto acaba sendo uma via mútua de olhares. Caroline Aleixo, integrante da equipe, comenta que a partir da visita de um homem que se identificou como artista, passou a vislumbrar perspectivas que não lhe ocorreram antes. Ele teria ressaltado a importância de presença de artistas periféricos no Galpão Bela Maré. “Me fez pensar que é super interessante que artistas já consagrados tenham espaço dentro da Maré, mas também é ótimo que esses artistas estejam em diálogo com os artistas periféricos; daí a grande importância da presença do Imagens do Povo na exposição e também a importância de discutir a abertura de espaço para outros artistas” – acometeu-se ela.

A professora Luisa Tavares (ao centro) e suas alunas Rafaela Soares e Géssica Marinho realizam a visita mediada com David Alfredo
A professora Luisa Tavares (ao centro) e suas alunas Rafaela Soares e Géssica Marinho realizam a visita mediada com David Alfredo

Segundo Janis, uma das preocupações da equipe do Educativo é valorizar as especificidades de cada grupo visitante. “A escola Clotilde Guimarães, por exemplo, é uma de nossas maiores frequentadoras. Uma professora comentou conosco que estava lecionando sobre a ditadura para seus alunos e então, quando vieram para a visita, buscamos explorar mais esse conteúdo de acordo com algumas obras aqui expostas, que flertam com esse tema” – conta a coordenadora.
A fim de agregar ainda mais possibilidades a essa experiência com a mostra de arte contemporânea na Maré, o Educativo prepara o Encontro entre Multiplicadores. À ocasião, estudantes universitários, professores, artistas e a equipe do Educativo se reunirão para concretizar as trocas oriundas da relação com o Travessias. O encontro está previsto para o dia 18 de outubro e haverá inscrições abertas para cerca de 40 pessoas. Mais informações, no site e na página do facebook.

A equipe do Educativo. Na sequência da esquerda para direita, e cima pra baixo: Dani Remilik, Jean Carlos, Michelle Barros, Carolina Aleixo, Janis Clémen, Letícia Souza, Renata Sampaio, Fernando Leão, Cami Carrello, David Alfredo e Nívea Santana.
A equipe do Educativo. Na sequência da esquerda para direita, e cima pra baixo: Dani Remilik, Jean Carlos, Michelle Barros, Carolina Aleixo, Janis Clémen, Letícia Souza, Renata Sampaio, Fernando Leão, Cami Carrello, David Alfredo e Nívea Santana.

UM CONVITE AO PRÓPRIO OLHAR

Comentar os trabalhos exibidos na exposição poderia ser comparado a um spoiler (quando se conta uma parte de um filme, peça ou livro para alguém que ainda não viu). Contudo, mesmo para quem já visitou o Travessias, é inevitável extrair novas possibilidades de apreensão do encontro. Acontece que ali tudo se alimenta dos olhares que as pessoas derramam sobre as obras ou deixam pendurados ao lado delas, como lentes disponíveis aos futuros visitantes. Cabe aos educadores agenciar tais perspectivas.

O trabalho de Jonathas de Andrade é uma das obras que se avista logo na entrada do Galpão. O artista dispõe cerca de 60 quadros e logo embaixo de cada um a palavra que dialoga com a respectiva imagem. A arte é inspirada no projeto de educação para adultos desenvolvido pelo educador Paulo Freire. A provocação se dá no momento em que o espectador liga a imagem à sua respectiva palavra, e vice-versa. Diferente da legenda, que busca descrever o que se vê, as palavras e imagens exibidas se relacionam de forma mais subjetiva, levando por vezes o visitante a questionar as associações. Essa é a deixa para que o olhar abandone o caráter passivo e atribua novos sentidos às imagens e às palavras. David Alfredo, um dos educadores do projeto conta que, certa ocasião, dois visitantes, ao se depararem com a densa quantidade de palavras e imagens, começaram a improvisar RAPs. Já Luisa Tavares, professora do curso de Design de Moda na Universidade Veiga de Almeida, pensou em reagrupar a ordem das palavras, criando sentidos mais concatenados. Desse modo, a exposição se apresenta, como numa paisagem. É preciso ter sensibilidade para reparar as nuances e elementos que estão além da percepção imediata. David acrescenta: “qualquer pessoa pode fazer isso, ter esse olhar atento, mas nem todas são convidadas”.

Sendo assim, fica um convite: o Galpão Bela Maré fica na Rua Bittencourt Sampaio, 169, na passarela 10 da Avenida Brasil, na favela da Maré. A visitação é aberta: terça, quarta, sábado e domingo, das 10h às 18h. Quinta e sexta, das 10h às 20h. O Travessias 3 fica no Bela Maré até 11 de novembro e a entrada é gratuita.

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