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A chama que não se apagará

Por Eliana Sousa Silva*

Não consigo dormir. Tenho uma mulher atravessada entre minhas pálpebras. Se pudesse, diria a ela que fosse embora; mas tenho uma mulher atravessada em minha garganta. (Eduardo Galeano)

Rio de Janeiro – Também não consigo dormir há dias. Estou com Marielle atravessada nas minhas pálpebras. Estou com Marielle atravessada na minha garganta. Difícil ensaiar qualquer possibilidade de fala neste momento. As palavras de Galeano me acertam e traduzem, mesmo que infimamente, uma angústia imensa, com a qual não estou sabendo lidar. São muitos golpes de uma vez só. Virão mais outros pela frente, tenho certeza. Difícil seguir. Difícil manter a chama acesa, apesar de sabermos que temos de lutar para que ela não apague.

São muitas as narrativas e as especulações sobre as possíveis razões da execução da parlamentar Marielle Franco no dia 14 de março — se é que podemos pensar em admitir que haja motivos plausíveis que expliquem um crime bárbaro como o que testemunhamos. Vemo-nos diante de uma selvageria que nos tira o chão, nos golpeia na alma e nos deixa atônitos. Como decodificar a real mensagem desse crime hediondo? O que diz essa tragédia sobre o fato de que aconteceu no Rio de janeiro no contexto de enfrentamentos, por garantias de direitos, de parte da sociedade civil e alguns segmentos de alguns partidos políticos juntos aos três níveis de governo?

Nesse cenário de retrocessos e incertezas no sentido de para onde caminhamos, torna-se primordial um olhar sobre a sucessão de fatos que podem ser determinantes para o que estamos vivendo. Refiro-me, por exemplo, à irrefutável situação de que temos, no Estado do Rio, um governador que foi eleito em 2014, mas que, nos três anos de seu mandato, não conseguiu cumprir minimamente com as suas obrigações em dimensão alguma. O atraso no pagamento dos salários dos servidores é um dos fatos paradigmáticos que revelam o abandono que estamos vivendo. No quarto e último ano de sua gestão, fomos surpreendidos com uma intervenção do governo federal que, por meio de uma estratégia militar, retira a pasta da Segurança Pública e a entrega a um integrante das Forças Militares.

Olhando para esse cenário, não há como deixar de reconhecer que se criou uma situação de exceção em relação ao Rio e a outros estados brasileiros, suspendendo-se os papéis legítimos de instituições como a Secretaria de Segurança Pública e as Polícias Civil e Militar. Lembrando-se de que esses órgãos vêm sendo sucateados no contexto da crise política, financeira e ética do estado. Então, a pergunta que se impõe é: por que o governo federal não escolheu investir no fortalecimento dessas instâncias, já que há reconhecimento público sobre capital humano, profissional e inteligência, tanto na sociedade quanto de parte das polícias — que poderia ser mobilizado, caso a demanda fosse, de verdade, entender as possíveis formas de diminuir a taxa de letalidade e violências em que nos encontramos?

Nesse quadro de incertezas e desmandos, no qual não se tem claro o quão movediço é o chão que estamos pisando, temos, talvez, o elemento chave que pode ter favorecido o ato de covardia que atingiu Marielle: a impunidade e a falta de esclarecimentos e responsabilização de um número significativo dos homicídios no país têm gerado certa naturalização, no que tange à aceitação de confrontos bélicos como parte da realidade cotidiana. O valor da vida e o seu sentido inegociável deixaram, faz tempo, de ser a razão predominante para que cesse a lógica bélica que tem caracterizado as ações no campo da segurança no Rio.

Conheci Marielle muito jovem, no momento em que iniciamos, alguns de nós, moradores da Maré, a ideia e a materialização de criação de um projeto estruturante para a região. Nosso pressuposto, que permanece até hoje, passa pelo reconhecimento do potencial dos moradores como sujeitos autônomos que produzem a transformação que desejam ver acontecer na Maré, na cidade, no estado, no país. Temos sido bem-sucedidos nesse processo ao longo dos anos, pois já somos muitos, numericamente, que nos forjamos na luta das favelas por direitos desde que esse processo começou, na década de 1980.

Marielle escolheu a via parlamentar para amplificar as lutas que nossos pais nos ensinaram, na nossa favela, a fazer. Radicalizou ao levantar algumas bandeiras identitárias que eram parte da sua vida e do seu estar no mundo. Não temos como nos calar diante da covardia contra ela. É certo que não sabemos aonde Marielle chegaria na sua trajetória política. Mas sabemos aonde ela poderia chegar a partir do percurso que vinha desenhando. Exigimos justiça. Que ela se faça.

*Eliana Sousa Silva é diretora da Redes da Maré

O artigo foi publicado originalmente no site do Jornal o Globo.
Acesse aqui: https://goo.gl/JXLL6C

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