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Antídoto ao discurso fascista sobre segurança pública

Por Luiz Eduardo Soares*

Foto: Agência Brasil

Este artigo foi escrito como uma contribuição aos parceiros que, enfrentando a resistência proto-fascista, mantém erguida a bandeira dos direitos humanos. Minha intenção foi oferecer argumentos persuasivos mesmo àqueles que não se importam com valores e apenas cobram resultados. Procurei demonstrar que, mesmo do ponto de vista exclusivamente pragmático, o descumprimento dos direitos humanos por parte das polícias leva à sua degradação e consequente enfraquecimento, e conduz ao fortalecimento do crime.

Em bom português: ei, dona Maria, aceitar e estimular a violência policial é um tiro no pé. Se a senhora deseja a segurança de sua família e não se importa se o preço a pagar for o assassinato de jovens nas favelas, atenção, pense bem. Não vai dar certo. Quer uma prova irrefutável? Não deu. É o que tem sido feito há tempos. Olhe ao redor. O que está à sua volta é o resultado de décadas dessa política que a senhora, ingenuamente, ainda defende. E cuidado: lideranças fascistas avançam, alimentando (e se nutrindo de) seu medo, seu ódio e seu desejo de vingança. Prezada dona Maria, sem querer, sem saber, a senhora está gestando um monstro.
Vou explicar.

“Não me custa nada te matar, aqui mesmo, agora. Basta apertar o gatilho. Quanto é que você me dá por sua vida?”
Quem pode matar, sem custo, pode não matar, com lucro, certo?
Se a pessoa sob a mira da arma escolher viver, aceitando pagar o preço, uma relação de troca se estabelece, na qual a moeda é a própria vida.

Então, lhe faço uma pergunta: quanto vale sua vida? Quanto você estaria disposto a pagar por ela? Acho que sei a resposta, porque seria a mesma que eu ou qualquer pessoa daria: mesmo que você reclame muito da vida, aposto que não hesitaria em entregar todos os seus bens materiais para preservá-la. Não é óbvio?

Sendo assim, podemos concluir, juntos, que transacionar com a vida é um bom negócio, desde que você esteja do lado certo do balcão. Esta é uma moeda que não cessa de se inflacionar, tornando-se crescentemente atraente. Quão menos custos forem impostos ao ato de matar, mais recorrente a transação e mais caro será o preço cobrado para deixar alguém viver, em vez de apertar o gatilho.

A transação que descrevi cria uma dinâmica de acordos, cujo efeito será a parceria entre quem pode matar e quem não quer morrer. A médio prazo, esses segmentos policiais e criminosos serão sócios.

É hora de dar nomes aos personagens: de um lado está o policial, autorizado a matar, segundo seu arbítrio; de outro lado, está o suspeito –suspeito, por exemplo, de ser um “traficante”. Para que se garanta a ausência de custos embutidos no ato de matar, são necessárias cinco condições:

(1) que haja a anuência explícita dos superiores hierárquicos, a qual se manifestará por palavras (ou silêncio), gestos (ou omissão) e obras (justificativas oficiais após cada ato);
(2) que as instituições responsáveis pelo controle externo da atividade policial (o Ministério Público) e pela persecução criminal (polícia civil, MP e a Justiça) não atrapalhem;
(3) que a vítima seja pobre e, preferencialmente, negra (porque a sociedade autoriza a brutalidade que confirma o racismo estrutural e as desigualdades);
(4) que o território no qual se realize o ato seja socialmente vulnerável –uma favela, por exemplo (espaço estigmatizado);
(5) que o potencial “matador” não tenha qualquer escrúpulo moral, nenhum vestígio de compromisso ético e nenhum superego.

Não há mistério. O raciocínio me parece lógico e límpido. Entretanto, continua sendo difícil convencer a “opinião pública” de que –ainda que suspendamos, para efeito de raciocínio, as considerações éticas e morais– não é benéfico para a segurança pública liberar o policial na ponta para matar, sem que isso lhe custe nada – e a seus superiores, inclusive governantes -, em sua carreira ou em sua vida.

Pelo contrário, é profundamente danoso para a segurança pública, porque a sequência previsível dessa transação em torno da vida é a pactuação entre o universo dos suspeitos e aquele dos segmentos policiais dispostos a jogar esse jogo. E, todos sabemos, quando polícia e crime são indistinguíveis, reina a insegurança.

Quem deseja segurança, deve defender o respeito rigoroso aos direitos humanos, por parte dos policiais, mesmo que não concorde com os valores expressos nos documentos internacionais dos quais o Brasil é signatário.

A história da corrupção policial no Rio de Janeiro é um exemplo didático. A liberação da brutalidade letal perpetrada por policiais, isto é, das execuções extra-judiciais, foi mais comum do que o veto a essa prática, ao longo de nossa história, mesmo se restringirmos nossa observação ao período posterior à promulgação da Constituição de 1988. Houve alguns anos, no governo Marcelo Alencar, do PSDB, quando o secretário de segurança era o general Cerqueira, durante os quais a “bravura” – correspondente, na maioria dos casos, a execuções – foi premiada com ganhos que não apenas suplementavam os salários dos policiais, mas eram a eles incorporados. Essa foi uma circunstância extrema: não se tratava de não impor custos à execução, mas de exaltá-la, estimulá-la, premiá-la. A medida recebeu o apelido de “gratificação faroeste”.

A economia da corrupção segue suas leis, obedece à sua própria racionalidade. Foi o que ocorreu: primeiro, a vida era barganhada no varejo, nos encontros fortuitos entre policiais corruptos e suspeitos. Mas o processo organizou esse mercado da morte, em busca de crescente rentabilidade. Esses segmentos policiais passaram a sequestrar os suspeitos e conduzi-los para casas, especialmente alugadas com esta finalidade, onde se davam as negociações, envolvendo comparsas e familiares das vítimas. O varejo não era tão mais fragmentário e imprevisível.

Entretanto, havia muitos custos: sequestrar não é tarefa isenta de riscos; manter a casa clandestina, tampouco. A racionalidade inscrita na economia da corrupção provocou outro salto de qualidade: os grupos envolvidos com essas práticas deram-se conta de que a melhor solução era o contrato, o acordo, o “arrego”. Na vigência do pacto entre policiais e suspeitos, reduzem-se os custos e ampliam-se os ganhos: os riscos são terceirizados (quem se envolve em roubos ou tráfico, etc… são os criminosos) e parcelas dos resultados obtidos pelas operações ilegais (os lucros das gangues) são apropriados pelos policiais.

Nesse terceiro estágio, predominam a previsibilidade – o equivalente criminal da estabilidade jurídica -, ou pelo menos a diminuição da incerteza; a substituição dos negócios no varejo pela transação no atacado, tendencialmente duradoura; assim como não há mais a necessidade do conflito, sempre perigoso, porque as partes, numa parceria, se entendem. Em outras palavras, os segmentos policiais corruptos passaram a ficar com uma parcela dos ganhos dos criminosos ou com um montante fixo, e o pagamento passou a ser efetivado em bases semanais, quinzenais, mensais ou mesmo diárias, de acordo com as características de cada caso.

É importante ter presente que uma qualidade fundamental, em qualquer economia, é a previsibilidade, e nada é mais eficiente para reduzir a incerteza do que a organização, outro nome para a pactuação interna (ao mundo do crime), tão relevante e funcional quanto a pactuação externa (com a polícia). O objetivo máximo, nesse sentido, é o monopólio, quando apenas uma organização domina todo o mercado. Ao contrário do que acontece no mercado legal, a competição, aqui, é danosa (implica mais violência e acesso mais barato aos produtos cobiçados, armas e drogas). O PCC é monopolista, em São Paulo. Como os homicídios constantes afastavam os consumidores a atraiam as polícias, a facção criminosa criou regras e mecanismos internos, dificultando sua prática. A sociedade, não só o PCC, foi beneficiada com a redução dos homicídios. O problema do monopólio é simples: gera um poder e uma dinâmica de poder, os quais só existem e persistem se visam sua própria expansão.

Observe-se que mais organização e unificação no plano interno ao mundo do crime importa em melhor articulação do pacto com segmentos policiais. Nesse estágio, é inevitável a politização, quer dizer, o envolvimento de criminosos, dentro e fora da polícia, com atores políticos permeáveis a composições ilegais. Uma alternativa é o ingresso direto na política, sem intermediários. A etapa subsequente ao fortalecimento de uma facção monopolista é a abertura de novas frentes de conflito, que implica a escalada da violência, em intensidade e alcance.

No Rio de Janeiro, o processo sofreu uma bifurcação: além dos acordos entre segmentos policiais corruptos e criminosos não-policiais, formaram-se milícias, das quais participavam e participam policiais e ex-policiais. Os dois caminhos, algumas vezes, convivem sem maiores contradições. Pelo contrário, complementam-se. Contudo, como o controle territorial e o despotismo exercido sobre comunidades, por parte de milicianos, é, em geral, mais lucrativo do que a mera sociedade com o tráfico, a tendência predominante tem sido a substituição de um “modelo de negócios” por outro. Em outras palavras, a história das milícias mostrou que, com frequência, foi mais atraente expulsar ou eliminar o tráfico e instaurar a tirania miliciana, que extrai recursos de todas as atividades econômicas locais, até mesmo do uso da terra. Uma vez constituído o novo poder, antigos traficantes podem ser contratados como prestadores de serviços ou como negociantes da droga, agora em benefício da milícia.

Desse quadro, deduz-se que a terapia democrática não poderá se resumir à prisão de corruptos e milicianos. Exigirá, a meu juízo, a refundação das instituições policiais, a legalização das drogas e uma verdadeira revolução nas relações entre o poder estatal armado (e não só) e as camadas sociais mais vulneráveis. Uma virada assim radical, democratizante, seria a consequência e a causa do começo do fim do racismo estrutural brasileiro. Enquanto parte significativa da sociedade continuar a autorizar execuções extra-judiciais dos “Outros”, isto é, dos jovens pobres e negros, e continuar a rechaçar os direitos humanos em nome da luta contra o crime, colheremos mais crime, menos eficiência policial, mais violência, menos legitimidade das instituições, menos confiança na Justiça e na Política.

O presente artigo foi publicado originalmente em: http://migre.me/vYxul

*Luiz Eduardo Soares é antropólogo, escritor, dramaturgo e professor de filosofia política da UERJ. Foi secretário nacional de segurança pública. Seu livro mais recente é “Rio de Janeiro; histórias de vida e morte” (Companhia das Letras, 2015).

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