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Lenine, o cantautor pernambucano e a arte de educar

Por: Alan Miranda (alan@observatoriodefavelas.org.br)

Foto: Bruna Rodrigues

O projeto Verão nas Arenas, realizado pela Baluarte Cultura, com curadoria da jornalista e escritora Monica Ramalho, e patrocínio da Prefeitura do Rio por meio da Secretaria Municipal de Cultura, levou Lenine, Pedro Luís, Tono e Mahmundi aos palcos cariocas. Dando a largada na agenda cultural de verão do Rio, Lenine e Tono fizeram as primeiras apresentações.

No dia 14 de janeiro, Lenine se apresentou na Arena Carioca Dicró e concedeu uma entrevista pouco antes do show, comentando a realização desse projeto. O cantor pernambucano, que já celebra 30 anos de carreira e se prepara para o lançamento de um novo disco, comentou a sua relação com a cidade, a visão sobre os aspectos culturais, o início da carreira e sua relação com o palco e com o processo de composição.

Lenine é um dos ícones da música popular brasileira. Ora vernacular, ora musical, o “cantautor” (cantor + autor) costuma trabalhar em parcerias e afirmar a importância da questão autoral. Lenine não gosta de ver seu trabalho associado ao entretenimento somente e reivindica a função de educador nesse processo. Durante a entrevista, concedida ao Observatório de Favelas, Arena Dicró, ESPOCC e ao canal Subsolo, Lenine foi cordial e solícito, à vontade. Como ele disse, “tocar no Rio, é tocar em casa”. Já no palco, o pernambucano trocou carinhos com a plateia e desferiu clássicos do seu repertório. A entrevista você confere a seguir.

Lenine 1

Notícias e Análises: Lenine, hoje é só você?

Lenine: É. E é uma oportunidade bacana. Eu gosto muito. São poucas oportunidades que a gente tem de mostrar a canção como ela foi feita, sabe. Sem a roupa de domingo, sem o arranjo, sem a maneira como você concretizou quando foi feito o disco. Então tocar assim é tocar a música despida, né? Nua. Ela nasce assim. E eu clamo sempre pelo autoral.

NA: Antes de mais nada, a gente gostaria de saber da tua impressão de tocar nas Arenas aqui no Rio e hoje aqui na Arena Carioca Dicró?

Lenine: Bom, tocar no Rio é tocar em casa. Já moro aqui há 32 anos, criei meus filhos aqui e diferentemente de quem nasce no Rio, pra quem escolhe o Rio é outra relação, porque a cidade exerce toda uma sexualidade. Então eu conheço muito mais o Rio do que minha mulher, por exemplo, que é nascida aqui. Aí, eu sei das dimensões desse Rio, porque já conheço a cidade. Agora, o projeto das Arenas é muito bacana. Tem essa coisa de você ter um investimento realmente. E uma estrutura para você, sem sucatear o que faz, poder ir a todos os lugares. Isso é fundamental, além do fato de ser subsidiado. Isso é maravilhoso porque dá a oportunidade para quem assiste que não teria ao preço real de quanto custa um ingresso. Se você for botar na ponta do papel, um espaço como esse, a luz, o som… você vai ver que não custa dois reais. Todo mundo sabe. Existe um subsídio para fazer com que as pessoas tenham acesso a isso. E isso é o melhor de tudo. Faz parte de uma vertente da educação. Por outro lado, para nós artistas é a possibilidade de ver como a música da gente chega em outros nichos que a gente só intui. Eu, por exemplo, não tô na casa da pessoa quando ela tá ouvindo um cd, nem no carro com ele quando toca numa rádio. O meu elo com as pessoas que gostam do que eu faço se dá quando eu toco. Fazer Arena, na minha equação, eu botei isso tudo, sacou? A possibilidade real de conjugar isso com a nova cena, o Tono que tá abrindo o show aqui com uma banda nova, além de estar tocando as minhas canções de uma maneira crua, despida. Isso pra mim é muito bacana. É uma conjugação de muitos prazeres.

NA: Você e outros grandes músicos pernambucanos costumam tocar no carnaval de Recife. Isso tem a ver com o incentivo cultural dado pelo Estado? Eu queria saber como você percebe isso aqui no Rio de Janeiro. Não só para no carnaval, mas também em outras atividades culturais.

Lenine: No caso do carnaval é uma coisa específica, particular. Isso aconteceu há 15 anos. Eu não trabalhava no carnaval, nunca trabalhei com a música sazonal, que está associada ao carnaval. No caso do Rio, o samba, mas no caso do Recife era frevo e maracatu. Mas Peixe, secretário de Cultura naquela época, me procurou e disse, o carnaval de rua no Recife é maravilhoso, a cultura tá viva, mas a gente também quer celebrar a música contemporânea. Aí eles falaram comigo, com Nação Zumbi, Naná Vasconcelos… Isso faz 15 anos. Esse ano eu não vou tocar, mas porque coincidiu de eu estar fazendo disco novo. Então, tem essa coisa, é muito bom, já a indústria do carnaval da Bahia foi por um caminho diferente. Hoje tá quase falido a maneira como eles faziam. No Recife o viés foi outro. São vários palcos na cidade frequentados por todo tipo de música celebrativa. Tem o samba, a música brega, o rock’n roll, além de todas as expressões populares, que ainda ganharam mais fôlego com esse êxodo e essa procura pela cultura de Pernambuco.

NA: E aqui no Rio, como você vê isso nos espaços populares, periferias?

Lenine: Sinto uma certa paternidade com o carnaval de rua do Rio. Porque sou do tempo do Suvaco (de Cristo), do Simpatia (é quase amor)… aqueles eram os primórdios e não existia esse carnaval de rua. Então, você vê que hoje o carnaval de rua com Bangalafumenga, com Monobloco, foi uma nova maneira de celebrar a rua do Rio com o carnaval. Briga com o samba? Não. Eu acho que são coisas diferentes. E são caminhos diferentes também. Assim é a cultura. Assim é trabalhar com arte. Você tá sujeito aos estímulos, ao que bate ou o que num bate. Acho que é muito isso.

NA: Na música “A Ponte”, tem um trecho com o depoimento de Caju e Castanha ainda crianças falando sobre como começaram, tocando lata na rua. Como você olha para esse nicho, que são os músicos de rua?

Lenine: Eu extraí isso de um filme “Nordeste: Cordel, Repente e Canção”, de Tânia Quaresma. E pra minha sorte, é o primeiro registro que se tem da dupla Caju e Castanha. Um com nove, outro com 11 anos. E eu achei muito significativo, naquela época, já ele com nove anos dizer “eu nasci tocando”, “eu só sei fazer isso”…

Então, olha, cara, a rua não difere muito nos diferentes lugares do mundo. A maneira de você sobreviver nela e tirar um caldo disso tudo tem a ver com sobrevivência realmente. E aí a rua não muda. Muda o sotaque desses artistas. Eu acho que isso tá acontecendo cada vez mais. A gente tá há muito tempo por descobrir um país de dimensão continental que a gente não tem ideia. A gente mal conseguiu assimilar o que é uma guitarrada, por exemplo, pra entender o que é uma Gaby Amarantos, que vem da Fafá (de Belém) tocando carimbó, porque o norte do país tava ligado ao Caribe. Portanto toda essa coisa salsa, merengue, tudo veio por ali. Por outro lado existe essa estética do frio no sul do país. E para um nordestino é difícil compreender uma estética de frio. Então a gente ainda tem que assimilar muita coisa do que somos para entender quem somos.

NA: Já que você tocou nesse aspecto das relações culturais, me parece que as tuas músicas denunciam que o teu trabalho não está ligado a cantar, compor e tocar somente, mas que tem a ver com pesquisa mesmo. “Todas elas juntas num só ser” e “Lá e cá” ilustram isso. Você tem essa preocupação?

Lenine: Mais do que isso: eu espero que o que eu faço vá além do entretenimento. Não gosto de ser confundido. Quando acham que é só entretenimento o que eu faço, acho que é desmerecer o papel de educador que eu tenho nessa história aí. Eu reivindico isso. Prefiro acreditar que minha música vai além do entretenimento, que mesmo depois de um show, de celebrar e tudo, o cara quando vai pra casa pense, pô ele falou da menina no sinal, a tempestade, e ninguém tá dando a mínima pra ela, ou que ele falou justamente das pontes possíveis… Me sinto mais cronista do que qualquer coisa. Mas assim, eu preciso ser honesto, porque o meu trabalho é muito coletivo. Talvez, impregnado pelo nome, pela educação socialista, eu gosto muito do coletivo e trabalho com muita gente. Com cada um eu sou meio “Zelig”, sabe, aquele personagem que onde ele chega incorpora um pouco do ambiente. “Todas elas juntas num só ser” é uma música que eu fiz com o poeta Carlos Rennó. No texto original, eu só gravei 6 versos de treze. Então isso acaba dependendo das parcerias. Tenho músicas com o Ivan Lins, com o Francis Hime, mas nesse momento chegou para mim uma música do Ivan ou do Francis para eu fazer uma letra. Aí eu sou mais literário (risos), sou mais vernacular, digamos. Em contraponto, quando eu trabalho com Rennó ou Sérgio Natureza, Paulo César Pinheiro é natural que nesse momento eu seja mais músico. Dependendo da parceria eu teria uma propriedade sobre a letra ou não. Até porque eu tenho parceiros como Bráulio Tavares, Lula Queiroga, Ivan Santos, Edu Falcão, e essa turma escreve como eu, letra e música. Aí é mais promíscuo, é mais confuso o que é de quem. Agora “Todas elas…”, um exemplo seu, é um texto do Rennó, que eu apenas enxuguei e foi uma briga danada pra poder tirar um bocado de estrofe (risos)…

NA: Mas ainda assim faz parte da tua preocupação com a pesquisa como ferramenta de educador?

Lenine: Completamente. Sim, e corrobora a figura do “cantautor”, que eu to sempre batendo, que é a questão da autoralidade. Rapaz, eu esqueço minhas letras, imagina, eu vou cantar uma música de Tom Jobim, eu vou pagar um mico, posso esquecer e trocar a letra de um Tom Jobim. Mas sendo minha música, eu faço outra letra na hora. É minha mesmo. É outra versão, “new version”. Tem esse exercício, sabe? Eu não me sinto intérprete. Eu só canto o que eu componho, e só canto mais ou menos 50% do que eu componho. Porque metade ou mais da metade eu componho pra outras pessoas. E não me sinto capaz de cantar. Esse é que é o maluco da história. É diferente quando eu sou um compositor e quando sou intérprete das minhas coisas. Por exemplo, tenho uma extensão vocal que vai daqui a ali, tenho uma coisa do meu violão. Então isso tudo é o que define: eu cantando as canções que faço. Mas quando componho para outros não. Eu tento incorporar a vida do outro e fazer algo que soe verdadeiro na voz do outro.

NA: Além de você e do Pedro Luís, o Verão nas Arenas também tem a presença da banda Tono e da Mahmundi, que são da cena alternativa ou independente, como alguns chamam. O teu início de carreira tem semelhanças com essa cena?

Lenine: Antes de tudo, eu gostaria de falar sobre a palavra “in-de-pen-dente”. Essa palavra, rapaz, é um tiro no pé. Porque a turma que é “independente” é a mais dependente. Ela não tem dinheiro, começa já daí. Ela depende da boa vontade, dos amigos, da família. Não tem ninguém bancando, é “papaitrocínio”, então tudo depende. Acho que seria mais oportuno rever esse conceito e dizer, nós somos os dependentes. Porque a gente depende do outro. A gente não faz nada sozinho, é sempre coletivo. Então, assim, “independente”, esse termo é quase um adjetivo de outro termo que é “world music”, que foi criado pela indústria pra excluir qualquer coisa que não seja cantado em inglês. Então, independente é o quê? Quem não tivesse na mamata das gravadoras. Uma carreira estipulada pela indústria.

Eu não passei por isso. Meu trabalho foi justamente o contrário, como sobreviver, como, acreditando e sendo cabeça dura, continuar fazendo, que é o mais difícil e como ser egoísta o suficiente para não abrir mão da sua verdade. Porque você vai se deparar com o não-reconhecimento, com o questionamento de todos, de quem tá em volta de você. Também tem essa coisa da superação. Então eu não sei, a indústria sorriu amarelo pra mim, se eu fosse ouví-la, tinha parado 30 anos atrás. Eu levei dez anos para fazer o segundo disco, depois de fazer com uma gravadora (Olho de Peixe). Portanto, esses dez anos parece um hiato. Não. Eu ralei, economizei grana para poder produzir o disco. Porque todo mundo dizia “não faz, não vai dar certo”. Talvez pelo exemplo de vida, eu possa dar esse tipo de conselho: se você acredita no que faz, se joga e faça. E você vai ter que continuar fazendo, fazendo, fazendo. E sempre buscando excelência. Não existe reconhecimento sem excelência. Aliás, até existe. É um em um trilhão e não é bom investir numa percentagem dessa. É melhor você se preparar, estudar, mergulhar profundamente e buscar excelência e fazer sempre o melhor porque isso é um depósito.

Eu não sou um balão, que estoura. Muitos amigos meus tiveram essa coisa “música balão”, que estoura e coloca o cara num patamar. O meu não, véio, foi sedimentar. Eu acreditava e fazia mais uma, foi como um depósito, uma poupança que eu fiz em cima da minha maneira, da minha assinatura. Mas no início não deu resposta não, cara. Passei um sufoco arretado. Porque a vida sorriu amarelo. Eu tive uma parceira maravilhosa, que trabalhava em televisão e que tava muito bem. Então eu pude ser babá dos meus filhos, nesse momento, porque eu trabalhava em casa, mas fui cabeça dura o suficiente para continuar fazendo. E aí você faz o primeiro, segundo, começa a frequentar os nichos independente de classe, de credo, e tua música passa a ser reconhecida não só como a música do entretenimento, mas uma música que pode ser uma alavanca de aproximação, um instrumento de conscientização e de crônica. E aí eu to aqui até hoje fazendo isso.

NA: O que significa fazer música?

Lenine: Música é a minha religião, cara. É minha igreja. Eu ritualizei o que eu faço a ponto de ser a minha espiritualidade. Antes de subir no palco eu faço um tipo de reza. Eu agradeço a intuição, o deus da intuição por ter me dado esse dom de conseguir capturar a alma das pessoas em determinados momentos. A música dá essa ferramenta. Tem a hora do clique. Eu vivo perseguindo esse clique, que aí não precisa de palavra. Eu consigo tocar a alma de cada um e eu sinto tocando a alma. Mas isso não acontece sempre, mas a gente tem que procurar isso. Sempre!

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