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Mulheres, Cidades e Mobilidade

Um olhar especialista sobre os tempos passados e presente e que nos convoca para a urgência de debate e construção de um breve futuro

Por Gabrielly Pereira (gabrielly@observatoriodefavelas.org.br )

Após a década de 30, com as revoluções industriais brasileiras e a frequente migração de indivíduos nos espaços, as regiões periféricas receberam um inflacionado número de trabalhadores que destinavam-se diariamente a seus postos de trabalho e retornavam para casa, em movimento pendular. Com os avanços e lutas sociais no decorrer do tempo, mulheres ocupam cada vez mais espaço no mercado de trabalho. Hoje, não é possível entender a cidade sem entender as especificidades de quem a faz funcionar. Assim como não é possível desassociar o direito à cidade das demandas de pessoas periféricas, sobretudo mulheres, que enfrentam duplas e triplas jornadas em seu cotidiano.

Em entrevista para o Observatório de Favelas, Tainá de Paula, mulher negra, mãe, arquiteta e urbanista traz reflexões e esclarecimentos sobre mobilidade urbana feminina nos efetivos modais da cidade, perspectivas de adaptações e enfrentamentos, políticas públicas estatais e novos caminhos para cidades possíveis.

Arquiteta e urbanista Taína de Paula. Créditos foto: divulgação


1) Uma pesquisa da Época menciona um estudo americano que afirma que o Rio de Janeiro tem o pior sistema de transportes do mundo. Pra você, quais são os principais fatores deste resultado?

Vou me pautar no Rio de Janeiro mas o debate pode ser nacionalizado. A gente tem erros graves que se replicam em outros estados e outros municípios. Nunca a malha do Rio de Janeiro foi repensada, o processo de ocupação urbana territórios que recebem equipamentos urbanos e itens de qualificação ao longo do tempo que concentram um número de linhas e um número de modais, como a zona sul e o centro, em detrimentos de outros que servem historicamente apenas para dormitórios da massa trabalhadora e da massa pobre. E aí, obviamente, numa lógica apenas de agregar os transportes que funcionam nesse movimento pendular, indo a um centro que temos acesso a equipamentos urbanos e qualificadores urbanos e voltando pra esses dormitórios. Essa lógica não mudou. Desde a implantação dos bondes, a gente tem a replicação desse modelo. Então, a gente tem uma perspectiva muito datada de construção de cidade aqui no Rio de Janeiro.

2) A partir de um recorte social podemos afirmar que moradores/as de periferia encontram maiores dificuldades de experienciar a mobilidade urbana?
Sabemos que o movimento pendular vai no sentido centro-periferia, nas periferias, nos assentos populares, se concentram o maior número da massa pobre, precarizada que não tem dinheiro pra bancar o preço do transporte. E o valor da tarifa é fundamental a ser debatido, quanto mais distante, mais se paga para locomoção em um modelo de cidade como é o do Rio de Janeiro. E, em uma contramão de raciocínio, onde se concentra o maior número de usuários é onde a gente deveria ter o maior número de transportes de qualidade e não é isso que acontece. O transporte está associado a uma lógica de demanda…Esse transporte, por uma falta de concorrência, de planejamento do Estado e de postura mais assertiva de política de orientação e de controle, você tem um péssimo serviço. A gente vive esse anacronismo, entre o alto lucro das empresas e a baixíssima qualidade de serviço, em uma cidade como o Rio de Janeiro.

3) Agora, a partir de um recorte social e de gênero, quais dificuldades as mulheres periféricas mais encontram ao lidar com os sistemas de transporte?
Um dos grandes gargalos para o transporte das mulheres – e fazendo um recorte maior para as mulheres negras que estão na base do pirâmide – é o custo. Se a gente pegar qualquer custo de mobilidade, a gente vai perceber que as mulheres andam mais a pé e elas não andam mais a pé só pela própria circularidade ou função na cidade. As mulheres cumprem dupla ou tripla jornada por conta de cuidados com os filhos, da família, então elas vão trabalhar, fazem movimento pendular, mas também fazem o movimento intra bairro. Elas vão ao mercado, na creche, nas unidades básicas de saúde, elas têm uma certa circularidade na cidade, permeando a cidade em um outro trajeto que não o origem-destino do movimento pendular dos modais clássicos. Essa mulher caminha. Nesse caminhar, a gente percebe uma cidade que é pouco pensada para pedestres, então, as mulheres são mais suscetíveis às agruras de ser uma pedestre em uma metrópole como o Rio. Elas estão mais suscetíveis à violência, sexual inclusive. Estão mais suscetíveis à falta de integração e pensamento integrador urbano dos modais… Esses percursos são invisibilizados para o mercado, para uma estruturação que pensa apenas o movimento pendular, dormitório ao posto de trabalho.

4) O vagão exclusivamente feminino, adotado em algumas cidades do Brasil, é um assunto que tem gerado debates e polêmicas. O que você, uma especialista, tem a dizer sobre a questão?
É um debate polêmico, mas é importante pensar no vagão para as mulheres como uma política transitória e finita. O que há hoje no Brasil é uma inversão completa dessa política, como se ela tivesse necessidade em ser ampliada para outros modais. Eu vejo a iniciativa em alguns municípios como “ônibus rosa” e falando muito concretamente essa perspectiva é uma perspectiva de apartheid de gênero instituída pelo Estado. Como é que a gente não suscita e não comenta o debate dessa exclusão, dessa inversão de lógica? Vamos combinar, se fossemos de fato pensar na exclusão de algum gênero específico, por que não, excluir estupradores em potencial? Por que eles, na verdade, são os promotores da violência e do assédio e não ao contrário.

5) Como estamos em relação às políticas públicas direcionadas às questões de gênero? Quero dizer, nós estamos caminhando ou inertes?

Em relação às políticas públicas com questões de gênero estamos no caminho. A democracia fez muito bem ao Brasil e a inserção da agenda das mulheres na constituinte foi fundamental para o início desse processo. Se pensarmos na inexistência da Lei Maria da Penha, na inexistência de uma política nacional para as mulheres, o que eram os anos anteriores a carta magna… isso era impensável. Então, sem dúvidas nós temos sim um avanço na sociedade. Agora, vivemos uma mudança paradigmática no país, até arriscaria dizer que para o mundo. A onda conservadora mira diretamente em política de retrocesso na agenda das mulheres. A agenda da ministra Damares Alves aponta que as mulheres têm que voltar para o lar, a cor da roupa é item de alinhamento de gênero…Esses discursos conservadores nessa pauta indicam que a gente precisa construir muito, em uma lógica de resistência para pontos que já conquistamos. A epidemia da violência de gênero, e precisamos falar que nunca se bateu e estuprou tanto as mulheres como em 2019 nos seus primeiros meses, aponta a necessidade de reforçar o debate sobre violência contra a mulher e assimetrias de gênero colocadas na sociedade.

6) Na sua opinião, estamos de forma equiparada aos homens na tomada de decisões das políticas urbanas da cidade?
Não temos nem no debate executivo, legislativo, em câmaras federais ou casas legislativas municipais, um número de mulheres que paute a agenda urbana como centralidade. O número de prefeituras e secretarias de planejamento e urbanismo, enfim… Os formuladores das políticas públicas urbanas são hegemônica e majoritariamente homens. E homens que não são sensíveis às assimetrias de gênero. Então, precisa fazer uma ocupação enorme em escalas transformadoras, do contrário não conseguiremos pautar nossos debates. Acho que iniciativas como o Fórum de Mulheres de Barcelona, que pautam a agenda das mulheres na cidade são iniciativas fundamentais pra gente aumentar cada vez mais o índice de participação. O controle urbano das mulheres precisa ser fortalecido em várias frentes.

7)Qual é o caminho para uma mobilidade heterogênea que engloba as questões das mulheres e, sobretudo, das mulheres periféricas?

Mudar o modelo de cidade. Cidades compactas que englobem, que aproximem os territórios e os espaços que as mulheres transitam é uma agenda importante nos próximos anos. É insustentável manter território como a favela desprovidas de saneamento, habitabilidade adequada e tão distantes dos postos de trabalho. Acho que se tivéssemos favelas com áreas comerciais formais, regularizadas, seria possível trabalhar no mesmo território de habitação. E, esse território habitado, poderia ser qualificado. Não acredito em um modelo de qualificação das favelas de um ponto de vista isolado. Requalificar a favela é requalificar a cidade. Na verdade, é a cidade que está em um modelo equivocado. A gente replica a exclusão e acho que precisamos refletir em modelos que garantam a eliminação das exclusões. Luto muito para que a cidade seja, de certa forma, mais equilibrada em todos os aspectos. Não só em uma perspectiva de gênero mas também em perspectivas de raça e classe. Se a gente englobar a dimensão racial da cidade, temos verdadeiros territórios negros e territórios brancos e isso em um país que possui a maior população negra fora de África, é um debate quase anormal. Existe um apartheid de raça no Brasil do ponto de vista territorial. Mas, voltando para a construção de uma cidade para mulheres, acho que uma cidade que cuida de suas mulheres, cuida de suas crianças e, não são todos os territórios nem todos os transportes nem todos os locais que as crianças conseguem ir. Falo da minha perspectiva como arquiteta e mãe, os espaços públicos que são isoladamente pensados para abrigar crianças mas não conseguimos abrigar atividades para as mães, atividades para as mulheres chegar nesses espaços já é muito difícil. Me coloco hoje como uma ativista que luta por um outro modelo de cidade e, obviamente, um outro modelo de sociedade onde mulheres consigam pautar, construir, projetar cidades mais justas. Cidades que funcionam para mães e crias funcionam para todo mundo e acho que esse é o debate central que precisamos fortalecer e objetivamente concretizar.

*Taína de Paula é ativista das lutas urbanas, especialista em Patrimônio Cultural pela Fundação Oswaldo Cruz e Mestre em Urbanismo pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Atuou em diversos projetos de urbanização e habitação popular, realizando assistência técnica para movimentos de luta pela moradia como União de Moradia Popular (UMP) e Movimento dos Trabalhadores sem Teto (MTST). Hoje presta assistência para o movimento Bairro a Bairro, onde atua como arquiteta e como mobilizadora comunitária em áreas periféricas.
É membro da Comissão de Gênero do CAU-RJ e atualmente é Coordenadora Regional do Projeto Brasil Cidades. É Conselheira do Centro de Defesa e Direitos Humanos Fundação Bento Rubião e da ONG Rede Nami. Representante do Brasil no Fórum Mundial no Fórum 2030 do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento na Tunísia, realizado em abril de 2019.

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