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“Nós contaremos nossas próprias histórias”

Por Viviane Laprovita

roda de conversa de mulheres 2

Lembro-me de estar algum dia em casa assistindo ao programa de debate “Saia Justa”, veiculado pela GNT, canal de TV fechada, e me deparar com uma discussão sobre racismo e o lugar da mulher negra na sociedade encarada de forma positiva, destacando uma melhora considerável no processo. Seria cômico, se não fosse trágico.

Eram 4 mulheres de meia idade, brancas (e ricas). Me senti bastante incomodada com a fala de todas elas, porque de alguma forma eram narrativas distorcidas sobre a discussão da mulher negra, onde o principal fator alarmante era a ausência da mulher negra do debate.

Nossas histórias estão sendo contadas por outras pessoas, que não vivem as mesmas dificuldades que nós mulheres negras, que não sabem o que é viver na periferia e ser bombardeada de opressões o tempo todo. Não teria nada mais justo do que dar voz a quem precisa falar. Entretanto, na comunicação o que menos acontece é ouvirmos a voz da minoria, ainda mais quando essa minoria é a mulher negra.

Diante dessa reflexão constante que, dia e noite me alucina, conversei com a Rafaela, uma de minhas companheiras de estágio na Agência Diálogos, e ela me confessou uma imensa dificuldade de conseguir falar sobre a condição da mulher negra na sociedade em primeira pessoa (Veja o relato abaixo). Percebemos que, de alguma forma a insegurança entre nós é constante e, não se trata de falta de capacidade, mas sim de um reflexo dessa opressão que vivemos.

Não estamos acostumadas a ter voz e essa dificuldade se torna cada vez mais latente. Para entender esse processo de retomada do lugar de fala, conversar sobre a reconfiguração das ideias e expor as dificuldades vividas na condição de mulheres negras, nós, estagiárias da Agência Diálogos, resolvemos sentar frente a frente pra conversar em uma roda onde o protagonismo feminino negro aconteceria de forma sólida. Nos encontramos em uma das salas do Observatório e demos início à conversa.

Um de nossos questionamentos iniciais foi sobre a construção do universo feminino e da sexualidade, identificamos um incômodo generalizado quando o assunto era sexualidade e feminino, pois percebemos que existe uma subversão clara do processo de transformação da condição enquanto menina para a condição de mulher. Nos sentimos oprimidas o tempo todo e identificamos uma relação condicional desse processo com o assédio sexual: “A forma como o ser menina é subvertido pra condição de mulher muito cedo, o assédio é naturalizado enquanto condição feminina”, explicou Rafaela, 18 anos, estudante.

Como mulheres, somos também condicionadas a proteger nossa vulnerabilidade e reconhecer que, no nosso dia a dia estamos expostas não só a qualquer tipo de assédio, mas também a violências físicas e verbais, estupros, julgamentos, xingamentos e isso se torna uma preocupação constante.

Roda de conversa entre as estagiárias da Agência Diálogos
Roda de conversa entre as estagiárias da Agência Diálogos

De alguma maneira somos obrigadas a naturalizar e aceitar isso, mas não precisamos: “Percebia um julgamento maior por estar usando um short curto, era chamada de vagabunda, essa situação de ser obrigada a esconder o meu corpo me incomodava. O feminismo me trouxe um olhar de embate que eu não tinha e hoje eu questiono muito mais.” – destacou Andressa, 17 anos, estudante.

“O mundo não deixa você esquecer que é mulher, desde que você nasceu porque é uma carga de responsabilidade enorme. Quantas vezes eu pensei em trocar de roupa antes de sair de casa pra evitar o assédio?”– complementou Gleicilayne Cristina, 16 anos, estudante.

Observamos inclusive que, no caso do assédio, a causa da situação é distorcida de forma tão grande que nós mulheres é que parecemos culpadas na maioria dos casos : “O pior é que a culpa é sempre nossa, você foi estuprada? Ué mas com que roupa você tava? Em que horário foi? Você tava sozinha? Você foi traída? Seu marido te largou? Mas você não tava dando assistência? – sempre somos culpadas independente da situação.” – destacou Gleicilayne.

Isso acontece não só na provocação do assédio, mas também na criação dos homens que agem de forma opressora com a gente. Um dos argumentos utilizados no embasamento de tal justificativa é que, se os homens são machistas e estão nos assediando é porque a culpa é da mãe que os criou, não conseguiu criá¬-lo pensando em respeitar a mulher. Ainda encontramos muita dificuldade na hora de exigir o respeito á mulher e de combater essas opressões.

Outra discussão que surgiu entre nossos questionamentos foi a anulação do homem no cotidiano doméstico e familiar, vimos que ela ocorre constantemente e varia desde não colaborar com as tarefas domésticas a não criar os filhos. O dever da mulher é imposto pra nós na forma do cuidado com a casa como obrigação, Yasmin, 17 anos , estudante exemplificou: “ Eu fui criada com a ideia de que mulher tinha que cuidar da casa e isso era imposto. Quando eu tento ter esse diálogo no ambiente familiar de compartilhamento de tarefas eu sempre ouço “mas você é mulher, quem vai saber fazer isso é você, os homens não estão aptos pra isso”.

Na esfera familiar o problema é pior, quantas mulheres são mães solteiras no Brasil? Percebemos que isso acontece porque os homens não são condicionados a assumir essa paternidade. Se cuidar da casa é dever da mulher, qual é o limite entre o dever e a violação dos direitos das mulheres?

O processo de desconstrução do machismo acontece diariamente, através de conversas principalmente dentro do ambiente familiar, com os amigos e ambiente de trabalho: “A gente tentar desconstruir isso em casa é muito importante, porque às vezes a gente se prende em ter atividades que auxiliam o processo de desconstrução em locais que já existe o engajamento. É muito mais difícil desconstruir isso em casa e às vezes a gente tem preguiça” – explicou Rafaela.

Para Andressa é algo que acontece de dentro pra fora: “É um processo de auto desconstrução também, nós podemos absorver pensamentos machistas sem se dar conta. Eu tento o tempo todo me controlar policiar pra não reproduzir essas opressões, mas pode acontecer sem a gente perceber. Nesse caso, as redes sociais são um meio de luta pra ajudar nessa desconstrução”.

Observamos que a ocupação desse lugar de fala no qual Andressa se refere, é uma resposta a ausência de representação que existe: “Por ser mulher negra, qualquer lugar que eu ocupo eu tô afrontando de alguma forma, até por ter a estética do cabelo natural. Quanto maior os lugares que eu alcançar, maior vai ser a opressão, porque eles não querem que a gente ocupe.” – Complementou Gleicilayne.

Essa ausência ocasiona a criação de representações distorcidas sobre o que é ser mulher negra e, diversas vezes isso se reflete na sociedade: “Por ser mulher negra eu percebo uma grande hiperssexualização do meu corpo. Desculpa, mas o meu corpo não foi feito pra ser objeto sexual.” – Disparou Andressa.

Diante desse bate papo tão plural que tivemos, entre questionamentos, críticas e constatações, compreendemos um elemento que perpassa a maioria dos assuntos conversados: a liberdade. Se ela não é respeitada, não existe igualdade. Precisamos ter liberdade de escolha pra decidir com quem a gente quer se relacionar, como vamos nos posicionar no mundo, que roupa vamos vestir e assim por diante. Precisamos da liberdade sem que ela venha com significados atrelados.

Queremos ser mulheres livres e que nós mesmas possamos definir o que é a liberdade. Queremos contar nossas histórias, criar auto representação. Somos privilegiadas por participar desse debate, mas estarmos aqui debatendo sobre isso, a galera que realmente precisa se conscientizar não faz parte desse debate. É preciso refletir e buscar um meio de transmitir nossas ideias pro mundo. Precisamos dialogar. É assim que conseguiremos desconstruir boa parte das opressões que criticamos. Que todo dia seja dia de diálogo, pra que a nossa militância aconteça de dentro pra fora e chegue a lugares cada vez maiores.

rafaela

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