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Rádio, Relógio, Remédio pras dores

Por João Felipe Pereira Brito* (joao@observatoriodefavelas.org.br)

Dona Geralda ouvindo a rádio de sempre, aparelho velho encaixado na janela dos fundos. Nos fundos, os moleques tomam café. Enfiam o pão francês amanteigado lá dentro da caneca de louça, presente que veio de Minas. Delícia! Que nojo. Dona Geralda bebe seu café puro, preto que nem asfalto, quente que nem Bangu. Bora, pra escola. Levanta, vambora! Camisa desgrenhada, mas com bolso costuradinho. Kichute no brilho, calça de tergal com a dobra do cabide. Vão os dois, preguiça de estudar, certeza de não decepcionar a velha. E Geralda ouve o rádio. Toca o Roberto. Toca o Milton. Toca a Elizeth. “Vista assim do alto, mais parece um céu no chão…”. Trânsito pesado lá pra cima, esgoto que estourou não-sei-aonde, fila de emprego na regional, lei que foi aprovada, inflação que desceu, 20 graus. Em Brasília, 6:45. No Rio, nova operação em curso na estrada do lá-vamos-nós. E Geralda toma o remédio. Reza o terço. Marca um X na folhinha de junho. Tá um cadinho frio, tá mesmo. Lá na roça era pior, mas tá frio, sim. Roupa pra passar. Vida pra esquentar! A filha se acorda, pede bença e vai pro banho, volta pro café com pão. Aspirina e um copo d’água. Toca a Elis, toca o Ednardo, toca a Bethânia. E tiros lá no morro do sei-la-o-quê. O trânsito melhora, a dor nas pernas também. Filha que vai e as duas na rua. Tem jogo do bicho, vai dar avestruz. Vassoura de piaçava, um litro de cloro. Sabão de barra e bombril. Feijão já no fogo e a cabeça no velho. Alho fritando e o velho insistente. Ovo no aguardo e o velho não volta. Já foi, morreu. Sumiu. Nem aproveitou os meninos, tão grandes. Nem viu a cria na faculdade, tão esperta. Nem teve sossego pras costas, tão cedo. Já vai dar meio-dia, meu Deus. Em Brasília, 11:55. Toca o Geraldo, toca o Tim, toca a Beth. “Subi… mais de mil oitocentas colinas! Não vi… nem a sombra de quem eu desejo encontrar…”.

Os meninos retornam: sujos, com fome, catiços. Só de cuecas, roupas no tanque, cafuné no mais miúdo. Olha os piolhos: não tem. Olha as orelhas: lavadas. Assoa o nariz: tá limpo.

– Vó, o moço falou lá no ponto das kombi pra VK que o asfalto chega semana que vem, do campo pra cá, tudinho.

– Ah, sim. É ano de Copa, ano de eleição, vai aparecer um monte por aí querendo fazer graça. Vamo vê se dessa vez resolvem.

– Se chegar antes da Copa a gente vai poder pintar a rua e o muro, né? Que nem os garotos lá da Vila, né?

– Com que dinheiro, garoto?? Eu, hein… Vai achando que dinheiro dá em árvore, vai achando…

“Em Brasília, no Planalto Central, 13 horas em ponto. O atacante Romário viaja ao Brasil para se juntar ao grupo da seleção. Romário reclama de cansaço muscular, mas nada que tire o sono de Carlos Alberto Parreira… No morro do… intensos tiroteios desde as primeiras horas de sol…”.

Segunda dose do remédio, ardem os joelhos. Bota as pernas pro alto e aumenta o volume. Pensa na moça que hoje chega tarde. Pensa na dona do armarinho que descobriu um nódulo embaixo do braço. Pensa nessa rua empoeirada, na escola que vai ter arraiá, pensa que agora subiu um mormaço. Toca Marina. Toca Paulinho. Toca o Gil.

“A refavela
Revela o sonho
De minha alma, meu coração
De minha gente
Minha semente
Preta Maria, Zé, João”.

*** ** *
Para saber:
“Sei lá, Mangueira”, por Elizeth Cardoso.
“1800 colinas”, por Beth Carvalho.
“Refavela”, de Gilberto Gil.

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