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Tudo Deve Desabar

Por João Felipe Pereira Brito* (joao@observatoriodefavelas.org.br)

Rio de Janeiro – Toda cidade nasce de um impulso coletivo para uma vida melhor. Como lar de realeza, fortaleza militar, entreposto comercial, sede universitária ou lugar de peregrinação, as cidades antigas tinham sobre si a sorte da pátria. A cidade industrial, concomitante ao cercamento dos campos e à exploração violenta dos camponeses, mais recentemente, atraiu como nunca as massas de despossuídos. Gente sem terra e sem herança, chegando, ficando, força de trabalho excedente, salários baixos, terrenos à venda: essa era a cidade moderna nascendo.

Com tantas pessoas precisando sobreviver na cidade, mais disputado ficou o solo urbano. Muita demanda, pouca oferta: preço alto. No Rio de Janeiro já republicano, a paisagem urbana encheu-se de africanos outrora escravizados e seus descendentes, entregues à própria sorte, e com migrantes fugidos da seca, da monocultura, do coronelismo, todos pobres. Além da solução “favela”, erguida em terreno público ou privado subutilizado, em geral em declive ou alagadiço, os imóveis abandonados perto de onde havia trabalho ou alguma possibilidade de ganhar a vida sempre serviram como casa para essa gente. Soluções lógicas e legítimas para tentarem escapar do imenso déficit social de trabalho digno e moradia, coisa histórica, antiga, tão brasileira quanto sonhar em português sob o cruzeiro da América do Sul.

Em São Paulo, máquina de concreto erguida com a fortuna do café, o processo de adensamento populacional e ocupação do território não foi tão diferente. Uma dessemelhança, o terreno: sem morros nas áreas nobres, mais espaço plano ao largo dos rios, sem um mar soprando brisa. Outra, a escala: hoje, vinte milhões de pessoas numa mancha urbana estrelada, espalhada por horas de deslocamento em todos os sentidos, iluminada dia e noite. Nessa São Paulo, de pretensão global, Babel rasgada por garoa fina, um prédio público abandonado foi lambido por fogo e desabou. Morreram dezenas de pessoas pobres que buscavam sobreviver na correria do centro da maior metrópole do país, outras estão desabrigadas, tantas com filhos no colo já não sabem mais o que fazer nesse mundo cão. Escrevo de novo, para frisar a tragédia, brasileiríssima: um prédio em São Paulo, “a locomotiva do país”, habitado por pessoas pobres em busca de trabalho e renda, foi incendiado e desabou! Por incrível que pareça, há quem tente culpá-las por terem nascido assim, pobres e insistentes. Há quem tenha coragem de dizer que a luta, a organização e a resistência dessas famílias são “vagabundagem”, “bandidagem”, “politicagem”, e coisas similares. Chamam de criminosas essas pessoas que apenas dançam conforme a música: é preciso ficar na cidade, é preciso arrumar um lugar pra morar, é preciso correr atrás do pão e do prejuízo.

A lei da cidade contemporânea vem sendo escrita ou interpretada sempre a favor de sua mercantilização. Mesmo quando há crédito público com juros em conta para a habitação, prioriza-se a oferta, quem vende, e não a demanda, quem compra. Mutirão, cooperativas de construção, vizinhos trabalhando juntos: tudo isso parece que nunca existiu. Muita casa sem gente, muita gente sem casa. Prédios e terrenos ociosos justo onde a cidade gastou tanto com urbanidade: metrô, hospitais, escolas, comércio, lazer. Uma cidade negociada, negociante, indisponível mesmo para os que ralam tanto.

Enquanto houver uma família sem teto e sem renda nas periferias, um imóvel vazio em área central será tão ofensivo quanto um tapa na cara. Tão desejado quanto um prato de angu na fome. Tão importante para o vigor desse sistema quanto a comida que se produz e se joga fora, apenas para manutenção dos preços. Transformaram a cidade, obra-prima do engenho humano, numa contradição sem-fim. Os que ocupam com bandeiras o alto das torres não são os bárbaros, mas os profetas. Eles anunciam que novos tempos virão, é preciso que venham, e rápido. Do contrário, tempo como este constante, a cidade inteira vai desabar.

*** ** *

Para saber:

“Guerra dos Lugares”, de Raquel Rolnik.
“Nada Como um Dia Após o Outro Dia”, Racionais MC’s.

*João Felipe Pereira Brito é carioca e nasceu e cresceu em Bangu, periferia oeste do Rio de Janeiro. É pesquisador e atua no eixo “Direito à vida e Segurança Pública” do Observatório de Favelas. Bacharel em ciências sociais pela UFRJ, fez mestrado e doutorado em sociologia e antropologia pelo PPGSA-UFRJ e extensão em planejamento e gestão de políticas socioambientais pela PUC-Rio.

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